Sempre fui fã do Anthony Bourdain. Li o livro que alçou o cara ao estrelato, assistia seus programas. Experimentar novos sabores e viajar sempre estiveram entre minhas maiores paixões, então nada mais natural mesmo. Gostava daquele jeitão de “viajante raiz” que ele pregava (embora, soubéssemos, com um poutsa esquema de produção por trás de tudo aquilo), a aversão ao estrelismo e da franqueza que ele parecia mostrar nas entrevistas. Sem contar que, direta ou indiretamente, ele indiscutivelmente mudou o jeito de muita gente viajar (principalmente americanos), ensinando o quanto a culinária local é importante ao conhecermos um país.
Acordei chateada lendo as notícias sobre sua morte aos 61 anos, um provável suicídio em pleno auge produtivo, em plena gravação de seu programa, durante uma viagem. E depois passei um bom tempo lendo reações online do tipo “como pode um cara com o emprego dos sonhos decidir tirar a própria vida?”. E é sobre isso que quero falar rapidinho aqui.
Como alguém que viajou a vida inteira e que há 14 anos passou a fazer disso um trabalho full time, vivo ouvindo de gente no mundo inteiro essa ladainha sobre ter “o emprego dos sonhos”. E aí que quero chegar: there is no such a thing as a dream job. Não mesmo. Se eu amo o que faço? Muito! Escrever (principalmente) e viajar são duas paixões da vida toda e poder, como jornalista, ter me especializado no mercado de turismo é até hoje um tremendo prazer. Inspirar as viagens de outras pessoas me dá orgulho e responsabilidade danados. Mas nunca fui “paga para viajar” (como frila, só recebo quando E SE vender uma matéria para algum veículo), pago muito mais pelas minhas viagens do que usufruo de convites e, nas viagens a trabalho, meu dia geralmente começa antes das sete e termina depois das duas da manhã – sem direito a “champagne na piscina”, como muita gente acredita.
Mas mesmo que fosse funcionária de uma revista ou caderno de viagens e “paga para viajar”: trabalhar com viagens tem suas dores e delícias, como qualquer outro emprego. Ter um trabalho que você ame e que te dê prazer é essencial, mas não existe aquele papo de “trabalhe com o que você ama e não terá que trabalhar nenhum dia da sua vida”. NÃO MESMO! Trabalho é trabalho – e não há nada de errado com isso na minha opinião. Pelo trabalho, tive a chance de conhecer lugares e hotéis que não necessariamente estariam dentro das minhas possibilidades (ou preferências), mas também deixei de ir a aniversários, casamentos, almoços e tô lá terminando frila no domingo à noite ou em pleno feriado para pagar meu condomínio, por exemplo. Não existem mais segundas-feiras mas também não existem mais finais de semana. Somem-se a isso os pagamentos sempre atrasados, a pressão dos deadlines, os (muitos) momentos de zero criatividade, os relacionamentos (em todas as esferas) que podem ficar extremamente mais complicados a longo prazo – e a lista poderia ir longe.
Repito: amo o que faço. Agradeço todos os dias pelas oportunidades pessoais e profissionais que tenho. Mas amo como a gente ama uma pessoa: pelas suas qualidades e também pelos seus defeitos. É um pacotinho complexo. Viajar a trabalho e viajar a prazer são dois universos completamente diferentes. Esse lifestyle de viagem deslumbrado que as redes sociais potencializaram – tipo “largue seu emprego e vá viajar”- criou uma aura extremamente ilusória sobre o universo de quem trabalha com viagens. (Sem falar na chegada de uma nova forma de consumismo tão socialmente aceitável e politicamente correta que, no fundo, resulta em querer ir para lugar X ou ficar no hotel Y porque fulano fez, ou em transformar o old fashioned prazer de viajar cada vez mais na necessidade de postar foto daquele milkshake, daquela piscina do hotel, daquele rooftop bar específico – mas isso já seria assunto de sobra para outro texto). Na real, o dia-a-dia de quem trabalha viajando é muito, muito diferente de quem está curtindo férias – e não teria mesmo porque não ser.
Trabalhar cada dia em um lugar novo, conhecer gente nova, ter a chance de experimentar sabores/culturas/experiências diferentes etc não nos exime dos problemas cotidianos de todo ser humano. Doenças, dramas familiares, frustrações de todo tipo, corações partidos, morte. Estamos todos sujeitos a isso, todo santo dia. Como meus pais me ensinaram bem pequenininha: a gente nunca sabe que inferno a outra pessoa atravessa – nem nunca saberemos. O que pode ser “emprego dos sonhos” pra mim pode ser bastante diferente da sua definição, ou da do Joãozinho, ou da Mariazinha. Viver na estrada (geralmente) não é, por si só, suficiente para deixar um ser humano 100% feliz e realizado.
E, mais importante que tudo: a depressão não escolhe suas vítimas. Nunca. Felizmente nunca passei por isso, mas já vi o estrago que ela pode fazer em algumas pessoas – e, pior, como a sociedade ainda entende mal a doença.
Descanse em paz, Bourdain.
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Que tal comprar um chip internacional com internet ilimitada para sua viagem?
Excelente “two cents”, Mari.
Brigada :*
Arrasou, Mari! Texto gênio e que precisa ser falado.
Estou muito medida com a morte dele e da Kate Spade na mesma semana! ?. Beijos
Rê
Brigada, Rê! :*
Quanta lucidez e humanidade no texto! Parabéns! Excelente texto!
Obrigada! :*
Muito boa sua explicação Mari! Excelente texto como todos que você escreve.
Você é querida demais, Malu!
Que belas palavras!
Já estou com saudades das nossas saidinhas, lembra que até falamos sobre essa questão de trabalho dos sonhos e afins, essa semana?!
RIP ao Bourdain… uma inspiração, pena ter nos deixado tão cedo.
Pois é! Saudades!!!
Adorei a matéria Mari! Beijos
Obrigada! :*
Nossa Mari que texto perfeito! É exatamente isso! Olhar de fora pra vida do outro é fácil, principalmente se for via mídia social. Só que, como bem disse o Caetano, “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Bjs e obrigada por este texto!
Querida você! :*